Aconteceu
em 1946, quando integrantes dos governos de Pernambuco, Bahia, Alagoas e
Sergipe se reuniram em Salvador para discutir o tráfico e uso da maconha e
elaborar um plano conjunto de ações de combate à droga. O Encontro, que foi
realizado entre os dias 16 e 18 de dezembro daquele ano, no salão de
conferências da Secretaria de Educação e Saúde da Bahia, contou também com a
presença de vários representantes do Governo Federal. Ao final, foi publicado
um documento denominado Convênio Interestadual da Maconha. O documento é de tom
essencialmente repressivo, mas em dois itens de suas recomendações finais
defende, textualmente, o plantio da maconha para experiências científicas e
industriais.
No
item 2 das sugestões aprovadas, o documento diz, por exemplo, que os governos
devem promover a "Destruição das plantações de maconha, limitada a sua
produção para fins médicos ou industriais". Já no item 19, o documento
recomenda o "Plantio pequeno, sob inspiração e fiscalização das CEFE
(Comissões Estaduais de Fiscalização de Entorpecentes), para fins de estudo da
maconha, dos pontos de vista farmacológico, clínico, psicológico e
sociológico". A redação das proposições ficou a cargo de Eleyson Cardoso
(representante do governo de Pernambuco e membro da Comissão Federal de
Fiscalização de Entorpecentes), Wolmar Carneiro da Cunha, Secretário de
Segurança da Bahia, e Álvaro da França Rocha, presidente da CEFE baiana.
De
acordo com as atas do simpósio, nenhuma das autoridades presentes fez qualquer
restrição aos itens 2 e 19 do Convênio. Pelo contrário, o conjunto das
proposições foi considerado brilhante e o documento passou a orientar a atuação
dos governos "para que sejam encontradas soluções mais objetivas do
problema da maconha e do maconhismo, de existência incontestável no Nordeste
brasileiro"
Entre
as medidas constantes no Convênio Interestadual da Maconha, a mais óbvia
recomendava aos governos que destruíssem os plantios da droga existentes nos
Estados. Outras três estavam relacionadas aos jovens - faixa etária onde se
concentrava o maior número de consumidores. Havia, também, a proposta de
criação de comissariados específicos para reprimir o tráfico de maconha e uma
recomendação, no mínimo curiosa, para que os governos adotassem a prática de
"matricular os cultos afro-brasileiros" que funcionavam em seus
territórios. Sobre esta última medida, os autores do documento explicaram que
não tinha qualquer relação com preconceito racial, era mais "uma questão
de sentido social", visto que a maioria dos viciados era composta de
negros e mulatos.
Durante
os debates para elaboração do Convênio, as autoridades concordaram num ponto:
que, naquele momento, o Nordeste já era um dos maiores centros produtores de
maconha do Brasil e que era preciso uma atuação conjunta para destruir os
plantios. Mas, quem apresentou o maior volume de dados sobre o tráfico da droga
na região foi o delegado de Pernambuco. Eleyson Cardoso exibiu relatórios e foi
taxativo na sua exposição: "A zona do baixo São Francisco, de um lado
Sergipe e de outro Alagoas, é um dos maiores centros de produção da maconha do
país". Afirmou que, conforme dados da Comissão Nacional, o maior produtor
de maconha do Nordeste era Alagoas. Sobre Pernambuco, apresentou um diagnóstico
de consumo, elaborado a partir das fichas de 46 viciados e traficantes.
Além
da existência de plantios às margens do São Francisco, os delegados dos quatro
Estados alertaram sobre o crescente comércio da maconha na região, praticado
até mesmo por arroba. "Em lugares de Sergipe e Alagoas, vendem a planta,
preparada para ser fumada, sob a denominação de pelotas, à razão de $ 3,00 o
quilo e $ 30,00 e $ 40,0 uma arroba", diz um trecho do documento. Também
foram feitas referências à entrada de maconha em presídios e os municípios mais
citados como produtores da droga foram Aquidaban e Propriá, em Sergipe, e
Colégio, Penedo e Igreja Nova, em Alagoas. Sobre a faixa etária dos
consumidores da droga, os autores do Convênio concluíram que a maior
percentagem era de adolescentes, "nos quais é grande o ângulo de
aventuras".
O
representante de Alagoas, Garcia Moreno, acrescentou que a predominância de
adolescentes entre os viciados (fato considerado o mais chocante) também estava
ligada "ao grande número de menores abandonados, chamados de maloqueiros
ou capitães de areia". Já o secretário do Encontro, o baiano Chrysippo de
Aguiar, opinou que o combate à droga deveria ser sistemático porque o consumo,
até então restrito às populações mais pobres, tenderia a mudar de classe
social:
"O
problema da maconha, tal como está situado, pode parecer um assunto de somenos
importância fora dos meios médicos e policiais especializados. É que o uso
deste entorpecente ainda se conserva restrito às baixas camadas sociais e
dentro destas, especialmente aos ladrões especializados em arrombamento,
capitães de areia, marítimos e meretrizes deste mesmo ambiente. Não será erro
imperdoável esperar que se difunda com intensidade, de modo a tornar-se objeto
de preocupação pública, através de debates na imprensa leiga, tal como parece
esboçar-se já o problema nos Estados Unidos", afirmou na saudação final
aos congressistas.
As
autoridades que subscreveram o documento definiram, ainda, que todas as
operações de destruição de plantios de maconha desenvolvidas pelos governos dos
quatro Estados a partir daquela data deveriam ser comunicadas à Comissão
Federal de Fiscalização de Entorpecentes. Essas operações ficariam a cargo das
autoridades policiais, mas nunca poderiam ocorrer "sem a direção técnica
de representantes do Ministério da Agricultura", porque esta era uma
determinação do decreto-lei federal 891, de 25 de novembro de 1938. Na época em
que o Convênio Interestadual da Maconha foi acatado como peça básica de
orientação ao combate à droga, o governo de Pernambuco era comandado por um
interventor, o general Demerval Peixoto, comandante militar na região.
A
cópia do Convênio Interestadual da Maconha localizada, no Recife, pelo
PERNAMBUCO DE A-Z é uma brochura de 20 páginas, publicada pela Imprensa Oficial
de Pernambuco, contendo o relatório do representante pernambucano ao governo do
Estado, transcrição das atas do encontro e suas resoluções finais. Faz parte do
acervo de livros raros da Biblioteca Pública do Estado.
Veja
a seguir, na íntegra, as medidas de repressão ao cultivo e comércio de maconha
sugeridas aos governos dos Estados de Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe pelo
Convênio Interestadual da Maconha foram as seguintes:
1 -
Planejamento das medidas, com especial atenção inicial nos Estados de Alagoas,
Sergipe, Pernambuco e Bahia, e posterior nos outros estados;
2 -
Destruição das plantações de maconha, limitada a sua produção para fins médicos
ou industriais;
3 -
Medidas jurídicas de revisão, ou interpretação, destinadas a consolidar e
atualizar legalmente todos os meios de repressão e profilaxia do maconhismo;
4 -
Inclusão nos Congressos, Semanas ou Reuniões sobre Psiquiatria, Higiene e
Correlatos, do tema "Repressão e profilaxia das toxicomanias",
especialmente a produzida pela maconha (sic);
5 -
Estudo e vigilância especial nos delinqüentes contra propriedade, de marítimos,
prostitutas e presidiários;
6 -
Especialíssimo trato e amparo para com os adolescentes;
7 -
Ordem do dia para as questões da infância e maternidade, menores abandonados ou
desajustados;
8 -
Criação, na Delegacia de Jogos e Costumes ou congêneres, de um comissariado
para repressão das toxicomanias;
9 -
Instrução e educação do pessoal indicado para o tratamento com esses problemas;
10 -
Intercâmbio obrigatório entre as CEFE (atas, trabalhos, fichas de viciados ou
de pesquisas);
11 -
Extensão, a todos os Estados, da gratificação aos membros da CEFE;
12 -
Padronização dos estudos;
13 -
Multiplicação dos dispensários de higiene mental e das medidas para descobrir
os psicopatas, prevenindo, assim, as toxicomanias;
14 -
Divulgação educativa e selecionada dos perigos das toxicomanias (adolescência,
por exemplo);
15 -
Internamento e tratamento, pena ou medida de segurança, colônias agrícolas para
os viciados e traficantes, conforme os casos;
16 -
Biblioteca especializada;
17 -
Fiscalização hábil, serena e metódica, do exercício profissional da medicina e
correlatas profissões;
18 -
Matrícula dos cultos afro-brasileiros e intercâmbio policial-médico de ordem
educativa-higiênica;
19 -
Plantio pequeno, sob inspiração e fiscalização das CEFE, para fins de estudo da
maconha, dos pontos de vista farmacológico, clínico, psicológico e sociológico.
Aprovado
em 18 de dezembro de 1946
Eleyson
Cardoso
Wolmar
Carneiro da Cunha
Álvaro
da França Rocha
Durante
o Encontro de Salvador, o presidente da Comissão Estadual de Fiscalização de
Entorpecentes, Eleyson Cardoso, também apresentou um perfil do usuário
pernambucano de maconha na década de 1940, elaborado com base em 46 fichas de
pessoas cadastradas no Departamento de Saúde Pública do Estado:
IDADE:
10 a
19 = 09
20 a
29 = 28
30 a
39 = 08
40 a
49 = 01
50
acima = 00
ESTADO
CIVIL:
Solteiros
= 42
Casados
= 04
SEXO:
Masc.
= 45
Femin.
= 01
INSTRUÇAO:
Alfabetizados
= 10
Semi-analfab.
= 04
Analfabetos
= 32
OCUPAÇÕES:
Gazeteiros
= 14
Carregadores
= 09
Gráfico
= 01
Estivadores
= 01
Aux.
comércio = 03
Pedreiros
= 02
Barraqueiro
= 01
Carpinteiro
= 01
Ambulante
= 01
Garçom
= 01
Sem
profissão = 08
Trabalhadores
(sic) = 01
Operário
= 01
Marinheiros = 2